sábado, 19 de março de 2011

Abecê

O abecê é um tipo de romance em que cada estrofe, habitualmente quadra ou sextilha heptassilábica, começa por uma letra do alfabeto. A última estrofe é reservada sempre para o til, que o povo considera letra final do alfabeto, porque com ele terminavam os antigos traslados de caligrafia usados nas escolas sertanejas.
Embora seja uma forma já em vias de extinção, os a-bê-cês são populares ainda no Nordeste, no Brasil Central e no Rio Grande do Sul. 

O assunto varia: pode ser narrativa de feitos de cangaceiros, bois fujões, batalhas poéticas famosas, biografia de santos, costumes rurais, sorteio militar, condenação ou louvor da cachaça etc.


Podem ser satíricos ou amorosos, em geral falando mal do casamento os primeiros, sendo os segundos de teor mais lírico do que narrativo. Musicalmente constituem uma toada simples, com acompanhamento de viola ou sanfona.

Abecê dos casados

Abecê colhido em Sítio do Mato, em 28 de agosto de 1949. Conforme registrado em Souza, Oswaldo de. Música folclórica do médio São Francisco, v.2. p.121-123 (Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1980)

A vida dos home casado
Tá u'a vida disgraçada
Pru via dos propres home
Traz a famía incomodada
Sai iscurecendo
Vem chegá de madrugada

Batê um home casado
No batente da janela
Home casado e vadio
O diabo bota a sela
Merece levá um tiro
De quebrá cinco costela

Çalvo em reservos [1]
Os que trabalha e prospera
Pra não ficá na putaria
Pra não ficá na misera
Onde tem home de respeito
Muié-dama não rebéra [2]

É certo que os casado
Veve de mal a pió
Não magina o otro mundo
Nem se tem um'alma só
Os soltero anda ruim
E os casado inda pió

Fique certo, os home casado
Que os sortero é quem vadia
Deus deixô a mulé-dama
Para imparo das famía
Tomando nossos posto
De vocês o que seria?

Goza os home casado
Duma vida tão ingrata
Que muié-dama só serve
Pra deixá um n'alpracata
Conta muito por feliz
Aquele qu'elas não mata

Há noteza nos casado
Não prosperam pra sê home
Se fô rico passa mal
Se fô pobre morre a fome
Home casado e vadio
O diabo é quem consome

I estes sem-vergonha
Que dão na vaidade
Disprezando suas sinhora
E perdendo as amizade
A muié deseja um tiro
Por obra de caridade

Já se vê, que grande clamô
De quem anda vadiando
Sai de suas casa de noite
Deixa suas muié chorando
A alma deste malvado
'stá no inferno dismaiando

Kachorro seja os casado
Que anda na baderna [3]
Vem da rua de noite
Cheio de bicheira nas perna
Quemmorrê cum este mal
Vai às profundas eternas

Lembrai, homes casado
Que tomaste o sacramento
Home casado e vadio
Tem o diabo por dentro
Vem da rua de noite
Parecendo um papa-vento [4]

Miseraves é os casado
Que dá a vida pelas rua
Gastando co'as muié-dama
Sem pudê visti as sua
Traz as dama bem vistida
Deixa a sua famía nua

Não precisa, sinhoras dona
Se morrê por eles não
Que home casado e vadio
Faz a pintura do cão
Vem da rua de noite
Parecendo um lubisão [5]

Os filho desses home
Cumo não há de ficá
Além do aprendê
E o que é de puxá
Pur cima da influença
Tem seus pais pra ensiná

Pensais, homes casado
Qu'esta vida é ruim oção [6]
Disprezando suas sinhora
Sofrendo suas tenção
Não magina, quando morre
Se perdê a salvação

Quem tem amô encuberto
Corre um-a grande censura
Cada pulo que dá
Salta sete sepultura
No meio da cachorrada
Dismanchando suas figura

Respondeu a rapaziada
Todos por esta manera:
– Feliz do home casado
Que levá uma carrera
Disprezando suas sinhora
Pra amá muié solteira

Se o mundo das muié-dama
Disprezando suas sinhora
Bem podia maginá
Que os casado é noves fora
Tenho visto até inzemplo
De 'panhá de palmatóra

Tem muitos sem-vergonhos
Que as muiés fala, eles zanga
Merecia sê matado
Ou tirados as capanga [7]
Pra fazê como a boi magro
E cumê capim na manga [8]

U favô que Deus fazia
Era mandá um castigo
Pr'acabá cum esses homes
Que tivesse neste artigo [9]
Além deles tá perdido
Joga a muié no pirigo

Veja lá, homes casado
Qu'isto não é boa vida
Que resultado vocês tira
Ir onde 'stá muié perdida?
Não magina a falsidade
Nem se morre na durmida

Xega os home casado
Querê tomá da rapaziada
Quando nóis num intrega
Fica de cabeça inchada [10]
Nos jurando todo dia
Nos batê pelas istrada

Zangados ficam eles
Brigando com as famía
Passa a noite intera
Só fazendo fantasmía [11]
Sai às sete horas
Só chega ao rompê do dia

Til, por sê do fim
Porém de grande valor
A vergonha deste mundo
O diabo carregô
Principalmente dos casado
Que nem um pingo ficô –

Notas: 1. Ressalvando, excluindo; 2. Não toma chegada, não se aproxima; 3. Farra, pândega; 4. Indivíduo dissimulado, fingindo uma virtude que não tem, procedendo conforme seus interesses; 5. Lobisomem; 6. Praticar maus atos; 7. Castrado; 8. Mangueira, pastagem cercada onde se põe o gado magro; 9. Nesta condição; 10. Enciumado; 11. Exibição afetada e ilusória.

Fontes: Jangada Brasil; Enciclopédia da Música Brasileira.

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