Os cantos do berço ou cantigas de ninar são melopeias monótonas, embriagadoras, com as quais a doce figura da avozinha e a da nossa mãe preta embalavam as crianças das novas gerações. Acompanham essas músicas doces e simples, poesias ou letras, inverossímeis umas, apavorantes outras, com as quais se procurava embalar os dóceis e amedrontar os rebeldes. Quem não teve a felicidade de ouvir a voz da vovozinha docemente, cantarolar em surdina?
Acordei de madrugada
Fui varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora
Com seu raminho na mão.
Pedi-lhe o raminho
Ela me disse que não
Tornei-lhe a pedir
Ela me deu seu cordão.
Santo Antonio e São João
Desatai esse cordão
Que me deu Nossa Senhora
Com suas bentas mãos.
E a criança adormecia feliz entre nuvens e sonhos angelicais. Às vezes a babá, negra velha que já acalentara os moços de duas gerações, ninava o "netinho branco", travesso e irrequieto, e na sua ignorância, procurava acalmá-lo com uma toada triste, monótona, a qual adaptava quadrinhas anônimas como esta:
Tutu Marambaia
Não venha mais cá,
Que o pai do menino
Te manda matá.
Não venha mais cá,
Que o pai do menino
Te manda matá.
Em outros lares a mulatinha pernóstica e sapeca, louca por uma conversa com o namorado, apavorava o garoto cantando, nervosa, mais ou menos com a mesma toada:
Lu-lu-lu-lu
De trás do Murundú
Papai com mamãe
Que te comam com angu.
De trás do Murundú
Papai com mamãe
Que te comam com angu.
Era a lembrança do gentio antropófago que se firmara no subconsciente do povo.
A música de quase todos esses cantos é mais ou menos a mesma com ligeiras modificações: uma frase musical que termina ascendente ou descendente, de ritmo lento, preguiçoso, arrastado. Há também toadas simples, mas com outras variações, uma frase absurda ora exclamativa ora interrogativa firmada por um refrão que se cinge a uma só palavra até, como neste caso:
Vamos detrás da serra
Calunga!
Ver a mulatinha
Calunga!
Da cara queimada
Calunga!
Quem foi que queimou?
Calunga!
Foi minha Senhora!
Calunga!
Por causa de quê
Calunga!
Por causa do peixe-frito
Calunga!
etc. etc.
Calunga!
Ver a mulatinha
Calunga!
Da cara queimada
Calunga!
Quem foi que queimou?
Calunga!
Foi minha Senhora!
Calunga!
Por causa de quê
Calunga!
Por causa do peixe-frito
Calunga!
etc. etc.
E por aí segue a cantiga em perguntas e respostas de sentido desconexo. Alguns compositores utilizam-se de motivos populares para comporem canções encantadoras. Sapo Cururú é uma linda cantiga de Heckel Tavares com letra de Olegário Mariano.
"Sapo Cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, maninha
Diz que está com frio..."
Na casa grande do engenho
Preta véia tá cantando
Prá sinhozinho drumi
Sarta o bacurao na estrada
E a lua entra na ginela
Parece que vem ouvi.
Preta véia então se alembra
Da vida que ali viveu
Deu o peito a Sinhô-Moço
E na rede de seus braço
Seu Sinhô-Moço cresceu.
Hoje cria Sinhozinho
Branquinho que nem jasmim
Tem sempre os óinho aberto
Só drome quando se canta
Preta véia canta assim:
Sapo Cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, maninha
Cururu tem frio...
Na casa grande de engenho
Preta véia tá cantando
Pra Sinhozinho drumi...
Na beira do rio
Quando o sapo canta, maninha
Diz que está com frio..."
Na casa grande do engenho
Preta véia tá cantando
Prá sinhozinho drumi
Sarta o bacurao na estrada
E a lua entra na ginela
Parece que vem ouvi.
Preta véia então se alembra
Da vida que ali viveu
Deu o peito a Sinhô-Moço
E na rede de seus braço
Seu Sinhô-Moço cresceu.
Hoje cria Sinhozinho
Branquinho que nem jasmim
Tem sempre os óinho aberto
Só drome quando se canta
Preta véia canta assim:
Sapo Cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, maninha
Cururu tem frio...
Na casa grande de engenho
Preta véia tá cantando
Pra Sinhozinho drumi...
Mas essas cantigas embora belíssimas, não tem o delicioso sabor das originais que lhes deram o motivo, nem tão pouco servem para ninar as crianças. São interpretadas, às vezes, com muita sinceridade, por artistas queridos nas estações de rádio ou nos recitais de arte.
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Fonte: Música Popular Brasileira - Mariza - Jornal do Brasil, de 24/01/1937; Ilustração extraída da revista "O Malho", de 1903.