As congadas são também chamadas de congados e congos, e são danças dramáticas ou folguedos realizados entre as festas de Natal e de Reis, ou durante os festejos de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do Divino Espírito Santo (ilustração acima da congada por Rugendas).
Sua formação é nitidamente nacional, ainda que na origem constitua uma mescla de tradições africanas com elemento de bailados e representações populares luso-espanholas. Consiste num cortejo real, ligado a uma parte representada — a embaixada —, que versa sobre assunto guerreiro.
Não obstante a origem comum, congos e congadas se diferenciam pelos assuntos das respectivas embaixadas. Enquanto a dos congos celebra as lutas em que viveram empenhados os povos negros africanos e sua parlamentação de paz ou de guerra, a embaixada das congadas se inspira, de modo geral, nas lutas entre cristãos e mouros.
Enquanto os congos parecem abranger apenas o Norte e Nordeste, as congadas se limitam ao Centro e Sul do Brasil. Os estudiosos costumam dividir os congos em três tipos:
1) Um simples cortejo real, com cantos e danças, imitando combates. Os congos na Bahia e em Sergipe, no séc. XIX, eram ranchos de negros formados em duas alas, simulando coreograficamente combates com espadas. No centro do rancho, entre as duas alas, iam três rainhas. Os elementos de um dos grupos tentavam tirar a coroa de uma das rainhas, a rainha Perpétua, que era defendida por elementos do outro grupo. Na congada de São Tomás de Aquino MG, aparecem o rei Congo e a rainha Perpétua, que são os festeiros, coroados simbolicamente pelo padre, em substituição ao antigo costume da coroação dos reis negros. As coroas, no entanto, são conduzidas numa bandeja.
2) Um cortejo real, com uma embaixada de paz. Em Goiana PE os personagens principais de um congo, representado por ocasião da festa de São Lourenço, eram rei dom Caro, secretário, embaixador da rainha Jinga. Após várias cantigas tem início a embaixada, isto é, a entrada das embaixadas de várias nações africanas, como Angola, Moçambique e outras, convidadas pelo rei do Congo para participarem da festa, especialmente a entrada solene da rainha Jinga. O embaixador oferece presentes ao rei, e a representação termina com danças e a “conferência de várias graças”, distribuídas pelo rei do Congo.
3) Um cortejo real, ao qual se segue uma embaixada de guerra, com episódios de combate. As descrições conhecidas deste terceiro tipo se referem aos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Os figurantes desses congos se dividem em dois grupos: o do rei do Congo e o do embaixador da rainha Jinga. Personagens principais: dom Henrique, rei Cariongo (rei do Congo) ou dom Caro; seu filho, príncipe Suena ou Sueno; o secretário ou secretário Lúcio, também filho do rei; o ministro do rei; o embaixador e o general da rainha Jinga. A embaixada tem início com o embaixador da rainha Jinga sendo trazido à presença do rei do Congo. Os dois entram em conflito, e o embaixador é preso e vai ser morto, mas, por fim, é perdoado pelo rei, por intercessão do príncipe Suena. O embaixador se retira. Trava-se então uma batalha entre o exército do rei do Congo e o da rainha Jinga, sendo aquele derrotado. O príncipe é preso, levado para junto do pai e condenado à morte pelo embaixador.
Em outra versão, porém, o final é diferente: o príncipe renasce, novo mito do renascimento da primavera, ou pelo menos do futuro renascimento do Congo. E, então, surge a curiosa cena final, entre o rei, o príncipe, o secretário e o ministro, para saberem qual dos quatro é o mais velho e deverá, por isso, seguir preso até o trono da rainha Jinga. Decide-se a verdade. É o rei do Congo que terá de seguir preso e morrer, porque é o mais velho. Esse final lembra a concepção primitiva do rei como entidade mística, de quem depende a segurança e a prosperidade da vida tribal, e os costumes que lhe são conseqüentes, encontráveis no Congo e em várias outras partes da África: o assassinato do rei velho ou a sua destituição.
A parte musical dos congos e congadas consta de trechos cantados durante as embaixadas; de danças puras e danças simulando combates; e de cantigas entoadas durante o cortejo: cantos de marcha, louvações religiosas de fundo católico, e mais raramente, cantos de trabalho e louvações de cunho fetichista acompanhadas de danças totémicas.
As melodias, curiosamente, acompanham a expressão dramática dos textos — o que raramente ocorre na música folclórica em geral. O acompanhamento instrumental é feito pelas banda- de-congo, que apresentam tambores, caixas, pandeiros, casacas, vários tipos de chocalho e violas.
Lá vem! Lá vem! Lá vem!
Descendo a rua do Rosário, pela altura da dos Latoeiros, caminho do terreiro do Paço, a tropilha folgaz dos negros vem cantando, a dançar, ao som de adufos, caxambus, chequerês, marimbas, chocalhos e agogôs, seguida, açulada, aplaudida pelo poviléu garrulo e jovial que com ela faz mescla e se expande feliz.
Nunca se viu na rua tanto negro!
São negros de todas as castas e todas as ralés, despejados pelas vielas e alfurjas em redor, atraídos pelo engodo da folia: congos e moçambiques, monjolos e minas, quiloas e benguelas, cabindas e rebolos, de envolta com mulatos de capote, com ciganos e moleques, a turba multa dos quebra-esquinas, escória das ruas, flor da gentalha e nata dos amigos do banzé.
O reboliço cresce, referve, explode, continua… Nos interiores das casas, a famulagem, ouvindo fora o ruído das músicas, desencabestada e candente, abandona o trabalho, deserta cozinhas, vara corredores, derribando móveis, batendo portas, saltando janelas, caindo na rua…
Não há escravo que atenda amo, que obedeça a senhor nesse minuto de desabafo e embriaguez. É uma loucura! O que ele quer, o negro, é aturdir-se na folia, mergulhar na folgança, integralizar-se no ritmo do samba, fazendo um pião do tronco, e das pernas dois molambos, que se confundem em delírio coreográfico.
É um desengonço macabro, em que a gente sente o negro desanatomizar-se todo, desarticulando o braço, cabeça, pé, perna, pescoço e mão. Isso tudo aos guinchos, aos assobios, aos berros, aos aia! oia! eia!
São as congadas!
Para ver o rei em charola, vêm até os mendigos escravos do Arco do Teles, elefantíacos, mutilados, chagosos, saltando em muletas, às costas de validos, ou, como répteis, de rastros…
Vamos encontrar nos tempos coloniais a Igreja intervindo e animando essas folias africanas, que aqui se revestiam de caráter cristão.
Igrejas como a do Rosário e da Lampadosa mostram, ainda, nos seus arquivos, notícias de animação e parceria a essas fantochadas pagãs, feitas sob a égide de São Benedito, de São Baltazar e de outros santos de tez carregada.
É que a bandeja das esmolas, pela hora da folgança, dentro ou fora da igreja, era sempre uma bandeja admirável, garantidora não só do custo de toda a cera do santo como ainda do desafogo e de muitas aperturas da irmandade.
O senso prático dos homens, como se vê, não é privilegio destes tempos. Já o conheciam os irmãos das confrarias coloniais.
As coroações de reis congos faziam-se nas próprias igrejas.
Coroava-se o negro e disso se lavrava um termo.
Em 1811 coroou-se a Caetano Lopes dos Santos, rei, e a Maria Joaquina, rainha, ambos da nação Cabundá, diz o termo lavrado na Lampadosa, "por estarem eleitos e por terem as respectivas licenças do senhor Intendente da Polícia". O papelucho histórico traz a assinatura de um íntegro sacerdote, o reverendo padre capelão Tomás Joaquim de Melo.
Para tais solenidades, em tudo copiadas das que serviam à coroação dos verdadeiros reis, enfeitava-se toda a igreja, acendiam-se os altares e até repicavam os sinos. Não esquecer que a bandeja das esmolas, avantajada e funda, para melhor funcionar era posta à prova das mais violentas esfregações, areiada, brunida, espelhada, posta como nova em folha…
Vejamos, porém, o préstito, que já dobrou a rua Direita, passando pela igreja da Cruz, caminho do palácio vice-real.
A um silvo agudo dado pelo capataz, diretor do folguedo, com dois dedos à boca, refreia-se enfim o estouvado entusiasmo, açaima-se o regabofe. Há no préstito mais ordem. As músicas vão à frente. Dominando a massa, no alto, em vistosos andores – o rei e a rainha, sob pálios carmezins, as pontas das varas enfeitadas de plumas e laçarotes. Vestem seda, tanto um como outro. Para isso, tirou-se uma licença especialíssima no Senado da Câmara, uma vez que a aplicação das leis suntuárias é rigorosa, quando se trata de gente de cor. Negro e mulato, segundo a pragmática de 1749, na verdade, não podiam sequer usar lãs e algodões de certa categoria. Sedas, então… Nem sedas, nem ornatos de ouro e prata, embora falsos.
Traz o rei negro sobre a encanecida cabeça uma coroa de papelão dourado, que nem por isso deixa de ser trazida com menos dignidade e grandeza. Veste uma casaca de chamalote marrom, véstia amarela, calções e meias cor de telha, trazendo sobre os ombros um manto rubro todo feito de belbute e recamado de estrelas e meias luas de latão.
Ao sol canicular que esplende e que castiga, sentindo da terra em fogo os bafos e as quenturas que esbraseiam e sufocam, el-rei Beiçola, dentro do inferno de sua indumentária, desaparecido sob um mundo de sedas e belbutes, todo sarapontado de placas metálicas, é no entanto, o homem mais feliz e mais refrescado do mundo, pois de emoção nem sofre o forno em que o meteram. Olhem-lhe os pés enormes, enfiados numas sapatarras de vaca. Debaixo daquele couro que queima, há uma meia de seda que escalda, e debaixo da meia, sobre cada dedo do pé, uma braza…
Sente-as, porém, o negro rei? Pois sim! O que ele sente nesse minuto histórico é a importância da figura que vai fazendo, debaixo da sua coroa de papelão. O que o preocupa e impressiona é a majestade do porte, esquecendo o tronco, em que de tempos a tempos o metem, coitado, olvidando o relho do feitor, e, até, a marca do Senado da Câmara, feita a ferro em brasa na espádua esquerda… Não há em toda terra monarca mais altivo. Nem negro mais feliz.
Vem, após, a rainha. Também traz coroa, roupas de seda, um merinaque estupendo, armado de barbadas e, sobre tudo isso, o manto pesadíssimo de belbute. No couce do préstito, então, as figuras menores, e que devem depois viver o poema coreográfico, que será exibido diante das janelas do vice-rei.
No largo, em frente ao palácio, estaca o préstito. Baixam, dos andores reais, os negros soberanos. Já o principal, sempre ao som da música, agitando o seu bordão enfitado, marcou o campo das danças, agitado e loquaz:
- Vai começar! Vai começar!
Erguendo-se do trono de improviso e posto à flor da terra, o rei, aí, resvalando o pernil cinqüentão ataca um bailado curioso, sempre envolto na capa pesadíssima, fazendo chocalhar as estrelas e as luas de metal:
Sô rei du Congo
Quero brincá;
Cheguei agora
De Portugá
O coro:
É Sambangalá
Chegado agora
De Portugá
A rainha, que seguiu o rei nas suas diabruras coreográficas, baila também, sacudindo o tundá revolto, aos rebolos, imitando os movimentos de um parafuso. Mas recuam logo, rei e rainha, indo tomar assento nos respectivos tronos, sob os pálios refulgentes de lantejoulas.
Soam agora, os aperos e grotescos instrumentos, em compasso de jongo. Há uma voz que insinua:
Quemguerê oia congo do má
Gira Calunga
Manu que vem lá
Do idioma africano ainda restam, como se vê, na versalhada tosca das congadas, alguns vocábulos. Da floresta africana a lembrança, porém, se apaga lentamente. O drama coreográfico já vai perdendo o seu cunho de origem. Evolui. Adapta-se.
O mameto, filho do rei, um molecote de dez anos, como os monarcas todo metido em sedas e com sua capa de belbute, logo que sentam em seus tronos o rei e a rainha, avança e, em círculos, a erguer os bracinhos tenros, põe-se a dançar, cantando em voz de falsete:
Mameto do Congo
Quero brincá
Cheguei agora
De Portugá
É quando, rompendo a fila dos que formam o cercado humano, marcando o campo onde se desenrola a farsa, surge um caboclo de olho trágico, vestido como um cacique, e que desfere o tacape terrível sobre a cabeça do mameto. Enquanto o filho do rei resvala, morto, dança, o mesmo, um bailado fauneano, a agitar o seu capacete de plumas e a sua tanga de penas de arara e anu.
Ouve-se, aí, uma voz que lamenta:
Mala quilombê, ó quilombê
E vê-se logo o capataz que se dispõe, em passos cabalísticos, a participar ao rei a notícia da tragédia, a morte do príncipe. É do poema. O rei ouve a nova estranha dançando um bailado trágico. E manda chamar, então, o feiticeiro (quimboto), a quem ordena que faça reviver, sem demora, o mameto.
Vale descrição especial a figura do bruxo ressuscitador que aparece. É um negro esplêndido de porte, ágil dançarino, trazendo, a tiracolo, uma cobra viva. Nos braços mostra grandes braceletes de missangas e tem as pernas envoltas em peles de anta e de jaguar. Impressiona. Dança em torno do corpo do mameto estatelado, cantando:
E mamaô. E mamaô
Ganga umbá, seisesê iacô
E mamaô. E mamaô
Zumbi, Zumbi oia Zumbi
Oia mameto mochicongo
Oia papeto…
E logo o coro:
- Quambato, Quambato.
– Savotá ó lingua.
– Quem pode mais?
– É o só. É a lua.
– Santa Maria.
– E São Benedito.
Não dá sinais de vida o mameto. Grita angustiosa do coro. Mas quimboto, tomando-o pelas mãos, ergue-o do solo, lentamente:
Tatarana, ai ouê
Tatarana, tuca, tuca
Tica ouê
Dá-se o mistério da ressurreição. O mameto bate as pálpebras e olha em torno, sentindo-se devolvido à vida. E, mais esperto que nunca, põe-se a dançar nervosamente, enquanto todos berram, fazendo soar alto os instrumentos sonoros.
O caboclo, que durante toda a cena ficou plantado diante do corpo da criança inanimada, louco de espanto, vendo-a ressurgir, ergue de novo o tacape, mas, já o feiticeiro, num passo de chula, fulminou-o com o olhar, que é uma estocada. Cai o caboclo vencido. Triunfo absoluto de quimboto.
É quando trazem a mais linda das princesas para com ele casar. Vontade e paga de el-rei Beiçola que assim o recompensa de tão valoroso feito. O mameto recolhe ao manto de belbute da rainha enlevada, enquanto que a jovem princesa e o quimboto dançam. Está finda a farsa, que acabou em casamento.
Os negros erguem, então, os andores do solo. A capa vermelha de belbute do rei flutua ao vento.
O feiticeiro, que cessou de dançar, segurando a mão da princesa gentil, faz uma cortesia de mergulho, profunda e alambicada, pondo os olhos no céu e num gesto de quem ensaia um minueto, dá saída ao cordão… E todo o préstito põe-se, de novo, em marcha, fazendo a volta do largo na altura do chafariz. O vice-rei austero goza, da sua janela de sacada, a alegria esfuziante da matulagem folgaz, as músicas, as danças, deslumbrado ainda pelo formigueiro humano que tem diante dos olhos e que da rompa do mar vai perder-se para o lado oposto da praça, extravasando pelas ruas da Misericórdia, Direita e Arco do Teles.
Cessado o poema coreográfico, no entusiasmo da marcha, todos os instrumentos soam ao mesmo tempo na confusão dos gritos, dos berros, dos assobios, dos aia... dois oia… dos uia…
O préstito porém, já vai penetrando a rua da Cadeia. Ainda se vê, longe, o andor da rainha congo balouçado no ar, aos ombros dos pretos fortes, e ainda se ouve, com a música bárbara que vai morrendo pouco a pouco, o estribilho da negrada espalhafatosa e feliz:
Quemguerê, oia congo do má
Gira Calunga
Manu que vem lá…
Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora; Jangada Brasil In Luiz Edmundo, "O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis".
Descendo a rua do Rosário, pela altura da dos Latoeiros, caminho do terreiro do Paço, a tropilha folgaz dos negros vem cantando, a dançar, ao som de adufos, caxambus, chequerês, marimbas, chocalhos e agogôs, seguida, açulada, aplaudida pelo poviléu garrulo e jovial que com ela faz mescla e se expande feliz.
Nunca se viu na rua tanto negro!
São negros de todas as castas e todas as ralés, despejados pelas vielas e alfurjas em redor, atraídos pelo engodo da folia: congos e moçambiques, monjolos e minas, quiloas e benguelas, cabindas e rebolos, de envolta com mulatos de capote, com ciganos e moleques, a turba multa dos quebra-esquinas, escória das ruas, flor da gentalha e nata dos amigos do banzé.
O reboliço cresce, referve, explode, continua… Nos interiores das casas, a famulagem, ouvindo fora o ruído das músicas, desencabestada e candente, abandona o trabalho, deserta cozinhas, vara corredores, derribando móveis, batendo portas, saltando janelas, caindo na rua…
Não há escravo que atenda amo, que obedeça a senhor nesse minuto de desabafo e embriaguez. É uma loucura! O que ele quer, o negro, é aturdir-se na folia, mergulhar na folgança, integralizar-se no ritmo do samba, fazendo um pião do tronco, e das pernas dois molambos, que se confundem em delírio coreográfico.
É um desengonço macabro, em que a gente sente o negro desanatomizar-se todo, desarticulando o braço, cabeça, pé, perna, pescoço e mão. Isso tudo aos guinchos, aos assobios, aos berros, aos aia! oia! eia!
São as congadas!
Para ver o rei em charola, vêm até os mendigos escravos do Arco do Teles, elefantíacos, mutilados, chagosos, saltando em muletas, às costas de validos, ou, como répteis, de rastros…
Vamos encontrar nos tempos coloniais a Igreja intervindo e animando essas folias africanas, que aqui se revestiam de caráter cristão.
Igrejas como a do Rosário e da Lampadosa mostram, ainda, nos seus arquivos, notícias de animação e parceria a essas fantochadas pagãs, feitas sob a égide de São Benedito, de São Baltazar e de outros santos de tez carregada.
É que a bandeja das esmolas, pela hora da folgança, dentro ou fora da igreja, era sempre uma bandeja admirável, garantidora não só do custo de toda a cera do santo como ainda do desafogo e de muitas aperturas da irmandade.
O senso prático dos homens, como se vê, não é privilegio destes tempos. Já o conheciam os irmãos das confrarias coloniais.
As coroações de reis congos faziam-se nas próprias igrejas.
Coroava-se o negro e disso se lavrava um termo.
Em 1811 coroou-se a Caetano Lopes dos Santos, rei, e a Maria Joaquina, rainha, ambos da nação Cabundá, diz o termo lavrado na Lampadosa, "por estarem eleitos e por terem as respectivas licenças do senhor Intendente da Polícia". O papelucho histórico traz a assinatura de um íntegro sacerdote, o reverendo padre capelão Tomás Joaquim de Melo.
Para tais solenidades, em tudo copiadas das que serviam à coroação dos verdadeiros reis, enfeitava-se toda a igreja, acendiam-se os altares e até repicavam os sinos. Não esquecer que a bandeja das esmolas, avantajada e funda, para melhor funcionar era posta à prova das mais violentas esfregações, areiada, brunida, espelhada, posta como nova em folha…
Vejamos, porém, o préstito, que já dobrou a rua Direita, passando pela igreja da Cruz, caminho do palácio vice-real.
A um silvo agudo dado pelo capataz, diretor do folguedo, com dois dedos à boca, refreia-se enfim o estouvado entusiasmo, açaima-se o regabofe. Há no préstito mais ordem. As músicas vão à frente. Dominando a massa, no alto, em vistosos andores – o rei e a rainha, sob pálios carmezins, as pontas das varas enfeitadas de plumas e laçarotes. Vestem seda, tanto um como outro. Para isso, tirou-se uma licença especialíssima no Senado da Câmara, uma vez que a aplicação das leis suntuárias é rigorosa, quando se trata de gente de cor. Negro e mulato, segundo a pragmática de 1749, na verdade, não podiam sequer usar lãs e algodões de certa categoria. Sedas, então… Nem sedas, nem ornatos de ouro e prata, embora falsos.
Traz o rei negro sobre a encanecida cabeça uma coroa de papelão dourado, que nem por isso deixa de ser trazida com menos dignidade e grandeza. Veste uma casaca de chamalote marrom, véstia amarela, calções e meias cor de telha, trazendo sobre os ombros um manto rubro todo feito de belbute e recamado de estrelas e meias luas de latão.
Ao sol canicular que esplende e que castiga, sentindo da terra em fogo os bafos e as quenturas que esbraseiam e sufocam, el-rei Beiçola, dentro do inferno de sua indumentária, desaparecido sob um mundo de sedas e belbutes, todo sarapontado de placas metálicas, é no entanto, o homem mais feliz e mais refrescado do mundo, pois de emoção nem sofre o forno em que o meteram. Olhem-lhe os pés enormes, enfiados numas sapatarras de vaca. Debaixo daquele couro que queima, há uma meia de seda que escalda, e debaixo da meia, sobre cada dedo do pé, uma braza…
Sente-as, porém, o negro rei? Pois sim! O que ele sente nesse minuto histórico é a importância da figura que vai fazendo, debaixo da sua coroa de papelão. O que o preocupa e impressiona é a majestade do porte, esquecendo o tronco, em que de tempos a tempos o metem, coitado, olvidando o relho do feitor, e, até, a marca do Senado da Câmara, feita a ferro em brasa na espádua esquerda… Não há em toda terra monarca mais altivo. Nem negro mais feliz.
Vem, após, a rainha. Também traz coroa, roupas de seda, um merinaque estupendo, armado de barbadas e, sobre tudo isso, o manto pesadíssimo de belbute. No couce do préstito, então, as figuras menores, e que devem depois viver o poema coreográfico, que será exibido diante das janelas do vice-rei.
No largo, em frente ao palácio, estaca o préstito. Baixam, dos andores reais, os negros soberanos. Já o principal, sempre ao som da música, agitando o seu bordão enfitado, marcou o campo das danças, agitado e loquaz:
- Vai começar! Vai começar!
Erguendo-se do trono de improviso e posto à flor da terra, o rei, aí, resvalando o pernil cinqüentão ataca um bailado curioso, sempre envolto na capa pesadíssima, fazendo chocalhar as estrelas e as luas de metal:
Sô rei du Congo
Quero brincá;
Cheguei agora
De Portugá
O coro:
É Sambangalá
Chegado agora
De Portugá
A rainha, que seguiu o rei nas suas diabruras coreográficas, baila também, sacudindo o tundá revolto, aos rebolos, imitando os movimentos de um parafuso. Mas recuam logo, rei e rainha, indo tomar assento nos respectivos tronos, sob os pálios refulgentes de lantejoulas.
Soam agora, os aperos e grotescos instrumentos, em compasso de jongo. Há uma voz que insinua:
Quemguerê oia congo do má
Gira Calunga
Manu que vem lá
Do idioma africano ainda restam, como se vê, na versalhada tosca das congadas, alguns vocábulos. Da floresta africana a lembrança, porém, se apaga lentamente. O drama coreográfico já vai perdendo o seu cunho de origem. Evolui. Adapta-se.
O mameto, filho do rei, um molecote de dez anos, como os monarcas todo metido em sedas e com sua capa de belbute, logo que sentam em seus tronos o rei e a rainha, avança e, em círculos, a erguer os bracinhos tenros, põe-se a dançar, cantando em voz de falsete:
Mameto do Congo
Quero brincá
Cheguei agora
De Portugá
É quando, rompendo a fila dos que formam o cercado humano, marcando o campo onde se desenrola a farsa, surge um caboclo de olho trágico, vestido como um cacique, e que desfere o tacape terrível sobre a cabeça do mameto. Enquanto o filho do rei resvala, morto, dança, o mesmo, um bailado fauneano, a agitar o seu capacete de plumas e a sua tanga de penas de arara e anu.
Ouve-se, aí, uma voz que lamenta:
Mala quilombê, ó quilombê
E vê-se logo o capataz que se dispõe, em passos cabalísticos, a participar ao rei a notícia da tragédia, a morte do príncipe. É do poema. O rei ouve a nova estranha dançando um bailado trágico. E manda chamar, então, o feiticeiro (quimboto), a quem ordena que faça reviver, sem demora, o mameto.
Vale descrição especial a figura do bruxo ressuscitador que aparece. É um negro esplêndido de porte, ágil dançarino, trazendo, a tiracolo, uma cobra viva. Nos braços mostra grandes braceletes de missangas e tem as pernas envoltas em peles de anta e de jaguar. Impressiona. Dança em torno do corpo do mameto estatelado, cantando:
E mamaô. E mamaô
Ganga umbá, seisesê iacô
E mamaô. E mamaô
Zumbi, Zumbi oia Zumbi
Oia mameto mochicongo
Oia papeto…
E logo o coro:
- Quambato, Quambato.
– Savotá ó lingua.
– Quem pode mais?
– É o só. É a lua.
– Santa Maria.
– E São Benedito.
Não dá sinais de vida o mameto. Grita angustiosa do coro. Mas quimboto, tomando-o pelas mãos, ergue-o do solo, lentamente:
Tatarana, ai ouê
Tatarana, tuca, tuca
Tica ouê
Dá-se o mistério da ressurreição. O mameto bate as pálpebras e olha em torno, sentindo-se devolvido à vida. E, mais esperto que nunca, põe-se a dançar nervosamente, enquanto todos berram, fazendo soar alto os instrumentos sonoros.
O caboclo, que durante toda a cena ficou plantado diante do corpo da criança inanimada, louco de espanto, vendo-a ressurgir, ergue de novo o tacape, mas, já o feiticeiro, num passo de chula, fulminou-o com o olhar, que é uma estocada. Cai o caboclo vencido. Triunfo absoluto de quimboto.
É quando trazem a mais linda das princesas para com ele casar. Vontade e paga de el-rei Beiçola que assim o recompensa de tão valoroso feito. O mameto recolhe ao manto de belbute da rainha enlevada, enquanto que a jovem princesa e o quimboto dançam. Está finda a farsa, que acabou em casamento.
Os negros erguem, então, os andores do solo. A capa vermelha de belbute do rei flutua ao vento.
O feiticeiro, que cessou de dançar, segurando a mão da princesa gentil, faz uma cortesia de mergulho, profunda e alambicada, pondo os olhos no céu e num gesto de quem ensaia um minueto, dá saída ao cordão… E todo o préstito põe-se, de novo, em marcha, fazendo a volta do largo na altura do chafariz. O vice-rei austero goza, da sua janela de sacada, a alegria esfuziante da matulagem folgaz, as músicas, as danças, deslumbrado ainda pelo formigueiro humano que tem diante dos olhos e que da rompa do mar vai perder-se para o lado oposto da praça, extravasando pelas ruas da Misericórdia, Direita e Arco do Teles.
Cessado o poema coreográfico, no entusiasmo da marcha, todos os instrumentos soam ao mesmo tempo na confusão dos gritos, dos berros, dos assobios, dos aia... dois oia… dos uia…
O préstito porém, já vai penetrando a rua da Cadeia. Ainda se vê, longe, o andor da rainha congo balouçado no ar, aos ombros dos pretos fortes, e ainda se ouve, com a música bárbara que vai morrendo pouco a pouco, o estribilho da negrada espalhafatosa e feliz:
Quemguerê, oia congo do má
Gira Calunga
Manu que vem lá…
Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora; Jangada Brasil In Luiz Edmundo, "O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis".
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