sábado, 2 de julho de 2011

Gurufim

Enterro de Paulo da Portela, que teve o corpo velado num autêntico gurufim em 1949
O gurufim é provável dialectação de golfinho. Canto de velório negro registrado no morro do Papagaio, em São Paulo SP. A dinâmica do canto é dada pela enumeração sucessiva de nomes de peixes.

Um solista entoa: “Gurufim já não está aqui / Gurufim foi pro alto mar”; coro: “Foi pro alto mar”; solista: "Gurufim está com fome?”; resposta: “Gurufim não come.”; “Quem come então?”; resposta: “Quem come é tubarão”; Outro solista: “Tubarão não come!”; “Quem come então?". E assim sucessivamente.

Trabalhos fúnebres populares

Nas favelas da antiga Guanabara e de São Paulo a guarda do morto inclui a brincadeira do gurufim, talvez corruptela de golfinho, que Luís da Câmara Cascudo relaciona ao delfim mediterrâneo que levava as almas dos mortos por mar para o outro mundo.

Lá pela meia-noite alguém começa:

Gurufim já não está aqui...
Gurufim foi pro alto-mar...

Os circunstantes respondem em coro:

Foi pro alto-mar...

Cada pessoa representa um peixe e, quando nomeada, responde, indicando outra:

– Gurufim tá com fome...
– Gurufim não come!
– Quem come então?
– Quem come é tubarão!
– Tubarão não come!
– Quem come então?

E assim, com intervalos de rodadas de pinga e café, os favelados cariocas e paulistas "distraem"o velório de amigos e conhecidos.

Chorar para quê?

Quando o ator, cantor e compositor Mário Lago morreu os amigos se reuniram no saguão do Teatro João Caetano para um velório com cerveja, falatório e até roda de samba. A festa era uma exigência do autor dos clássicos Aurora e Ai que saudades da Amélia. O mesmo tipo de cerimônia - sem vela nem choro - marcou também as despedidas de outras personalidades importantes do samba, como Paulo da Portela e Silas de Oliveira, e mais recentemente Zé Keti e João Nogueira. Longe de ser considerado um desrespeito à alma ou à família do morto, o último adeus com bebida, música e dança é uma velha tradição trazida pelos escravos africanos.

“Velório para os pobres se chama gurufim. E gurufim de verdade sempre acaba em samba”, diz o sambista Wilson das Neves, de 66 anos, ele próprio um veterano de velórios em Madureira. “É uma festa de despedida para a alma do morto seguir feliz até o céu. Mas hoje em dia não tem mais isso não. Só acontece em casos especiais, como na despedida do Mário Lago”.

O gurufim é herança dos escravos bantos e foi muito popular nas comunidades pobres do Rio até meados dos anos 60. Como as famílias não tinham dinheiro para alugar as mesmas capelas usadas pelos ricos, optavam por velar os parentes mortos na própria sala de jantar. O corpo do defunto ficava deitado sobre a mesa e as coroas de flores espalhadas pelo corredor. Para distrair a família do morto até a hora do enterro, os vizinhos faziam brincadeiras de adivinhação, lembravam histórias antigas e para matar a fome e o sono eram servidos sanduíches de mortadela e garrafas de café durante toda a madrugada.

A mistura de sagrado com profano até hoje é lembrada com saudade pelos mais velhos. Filho do mestre-sala Marcelino José Claudino, o mestre Maçu, um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira, Seu Valdir, de 64 anos, conta que quando havia velório no Buraco Quente só faltava ter fogos de artifício. “A família do morto esperava o benzedor ir embora para servir cachaça aos convidados. Aí o gurufim virava festa! Tinha sueca, dominó e roda de samba. E ninguém podia reclamar porque já fazia parte da tradição”, conta Seu Valdir, hoje diretor de bateria da Velha Guarda da Mangueira. “Gurufim não era exclusividade só do pessoal do samba. Todo mundo gostava, até as famílias mais tradicionais".

Bandidagem adorava

A prática do gurufim era tão comum nos anos 40 e 50 que alguns moradores de favela acabaram se especializando na organização da festa. Na Mangueira, por exemplo, Bichinho e Genésio eram os primeiros a chegar e os últimos a sair. “Eles avisavam todo mundo e gostavam de organizar a festa. Pareciam até empresários de gurufim”, lembra Seu Valdir.

Os quitutes servidos durante a madrugada eram preparados pela própria família do morto. Os comes e – principalmente – os bebes atraíam gente de toda a comunidade. “Ninguém queria perder a boca livre. A bandidagem também adorava. E como todo mundo era convidado não tinha nem como barrar”. O gurufim não era exclusividade apenas das comunidades pobres do subúrbio carioca. Na Rocinha, maior favela da Zona Sul, a festa de despedida do ritimista Paço Preto, nos anos 70, durou três dias e muita gente teve que inventar desculpa para faltar ao trabalho na segunda-feira.

O fotógrafo Carlos Buzunga, de 47 anos, conta que Paço Preto era ele próprio um fissurado em velório. “Ele adorava um gurufim. Na hora da festa contava piadas, organizava as brincadeiras, era um figuraço! Na despedida dele a favela parou”, conta Buzunga, que confessa que demorou um pouco até se acostumar com a cerimônia. “Achava muito estranho, meio contraditório, as pessoas comemorando a morte! Mas depois entendi, era um jeito de se despedir do morto com alegria”. Personalidades famosas do samba carioca foram protagonistas dos mais grandiosos gurufins de todos os tempos nas favelas e subúrbios.

Quando Paulo da Portela morreu, nos anos 40, o corpo foi velado em casa e a festa reuniu cerca de 15 mil pessoas. A multidão se espremeu nos corredores apertados da vila onde ele morou até morrer - uma exigência da mulher Maria Elisa. Na manhã seguinte, o cortejo fúnebre seguiu pelas ruas de Madureira até o Cemitério de Irajá. A pastora Eunice Fernandes da Silva, de 84 anos, integrante da Velha Guarda da Portela, conta que era quase impossível chegar até o corpo do sambista. “Não dava nem para entrar na casa direito. O povo ficou ali a noite inteira, conversando, bebendo, contando história. O cortejo só saiu no dia seguinte. Lembro das pessoas parando nos botequins para recarregar as baterias. Era triste mas divertido”, resume.

Outro sambista famoso que teve uma despedida digna da sua importância para a música popular brasileira foi Silas de Oliveira, considerado até hoje um dos grandes compositores de sambas-enredo de todos os tempos. O curioso é que, além das incontáveis rodadas de cerveja e cachaça, o velório de Silas teve também discursos inflamados sobre injustiça social e até sobre problemas de direito autoral. Foi o primeiro caso de ‘gurufim filosófico’ da história. “Eu estava fazendo show fora do Rio na época e infelizmente não pude comparecer. Mas os amigos todos prestaram sua última homenagem e o Silas teve o gurufim digno da sua grandeza”, afirma Wilson das Neves.

As águas rolam a noite inteira

Como a tradição do gurufim praticamente deixou de existir em meados dos anos 60, a nova geração das favelas e subúrbios cariocas pouco ouviu falar sobre a festa. A dona-de-casa Eunice Santos Pinto, de 62 anos, moradora do Cantagalo, admite que seus filhos nunca chegaram a participar da festa no morro, mas conta que a cerimônia já existia desde os tempos em que morava em Minas Gerais. “O gurufim era muito comum nas cidades do interior. E aqui no Cantagalo foi a mesma coisa. Quando era criança achava meio estranho aquela história das pessoas ficarem bebendo do lado do morto. Depois acostumei”.

Dona Eunice lembra de um outro aspecto curioso da festa. “Só assim a gente tinha certeza que as pessoas morreram, né?” As rodas de samba, os jogos de adivinhação e o falatório que marcaram as noites de gurufim nas favelas cariocas foram aos poucos dando lugar a solenidades mais contidas. E não foi só uma questão de modernidade. A violência das cidades grandes contribuiu para acabar com a tradição herdada dos escravos. “A gente não pode mais ficar dando bobeira por aí. Até as capelas dos cemitérios estão fechando de noite por causa da violência”, lembra Seu Valdir.

E como todo gurufim acaba em samba, matéria sobre velório na favela não podia ter um final diferente. Wilson das Neves finaliza recordando o samba “Velório no morro”, de Raul Marques e Tancredo Silva: “Lá no morro quando morre um sambista / É um dia de festa / E ninguém protesta / As águas rolam a noite inteira / Pois sem brincadeira o velório não presta / Tem também um gurufim / Que no fim acaba / Sempre em sururu (...)

Fontes: Publique! - Especiais: Chorar para quê?; Jangada Brasil - in Carneiro, Edison. "Trabalhos fúnebres populares". O Globo. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1972; Enciclopédia da Musica Brasileira - Art Editora.

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