sábado, 19 de março de 2011

Buá

O buá é uma dança talvez dramática, provavelmente relacionada com o maracatu alagoano. Mencionada por Alfredo Brandão sem esclarecimentos de se é dança pura ou dramática. O fato de esse autor descrever o buá em seguida ao reisado-do-guriabá, leva a pensar que seja dramática.
Pode ser aventado possível parentesco do buá com o maracatu, uma vez que as cantigas coreográficas brasileiras costumam nomear, nos textos, as danças a que servem.


Eis a descrição: “Os negros e negras de mãos dadas, em duas ordens que se enfrentam, avançam e recuam como nas quadrilhas e cantam a seguinte copia: É de cuia em cuiambuque / Para fazê maracatu / Maracatu buá / Vira meu povo, {eiê, buá/Torna a virá, ieiê, buá. Aos últimos versos soltavam as mãos, batiam as palmas e pivoteavam sobre si mesmos”.

A dança do buá (por Abelardo Duarte)

Pouca gente mesmo entre os que se entregam à pesquisa e aos estudos do folclore brasileiro conhece a dança do buá ou dela já ouviu falar. A razão desse desconhecimento explica-se em certo sentido, pela pouca irradiação que logrou obter a referida dança. Ficou, ao que parece, circunscrita a Viçosa (município de Viçosa), nas Alagoas. Viçosa diga-se de passagem, é ainda hoje um foco dos mais vicejantes das tradições afronegras, particularmente das dos grupos bantu, dos quais remotamente muitos elementos a povoaram.

Em que consiste essa dança? Qual a sua origem? Eis duas perguntas que deverão ser respondidas por partes. Torna-se sempre tarefa delicada e paciente (muitas vezes até inteiramente impossível a determinação exata da origem das danças nacionais, sobretudo quando o processo de reconhecimento se opera tardiamente, como é o caso da dança em apreço. Embora a sua localização em território onde houve a presença do negro em forte escala leve à suspeita, não se pode concluir a priori que efetivamente se trata de dança dessa origem. Pelo menos, quando não se possa afirmar que se está em presença de dança negra característica, ritualista ou tribal, chega-se a acreditar na sua origem negra ou crioula. Pelo menos pode-se de boa fé pensar desse modo.

Registrada numa área de predominância das culturas bantu e incluindo os povos dessa origem entre as suas danças rituais (ritos diversos), tudo leva a crer que se que se verificaria uma revivescência dessas danças em que entraram elementos especificamente negros como os das "mãos dadas". Eu a supusera uma dança simplesmente diversional, um passatempo de negros ou de crioulos. Uma dança de escravos ou negros das senzalas. Porém, eles já possuíam essa outra dança — o coco, anteriormente também chamado samba.

Estou hoje mais inclinado a crer ou a admitir, com certas reservas, a hipótese acima expressa, de que fosse uma dança ritualista, das muitos comuns entres os povos bantu, maiores povoadores da imensa área palmarina, a que Viçosa pertenceu geográfica e culturalmente falando. Concorre ainda mais para reforçar esse meu juízo a presença, nesse tipo de dança do sistema "em fileiras opostas" (que não é comum entre os negros africanos), mas que existe, como assinala Mário de Andrade e marca episódios rituais.

Há, porém, um ponto que me intriga, e me faz dizer quase como o inolvidável Mário de Andrade, a propósito de samba e zamba: "o que me desespera são certa coincidências (coincidências?) de irritante improbabilidade".

Danças ritualista em fileiras opostas registram-se, é verdade, na África, com igualmente danças em círculo, danças de roda, esta última a modalidade mais comum. Foi justamente o tipo de dança de roda que predominou entre as danças pelo negro implantadas nas terras brasileiras com o seu velho hábito de dançar; e não o de fileiras opostas.

Dança de roda é por exemplo, o nosso coco, o chamado coco alagoano. Daí...

Quanto à etimologia, o termo buá parece ser antes uma corruptela de "Babua", topônimo africano do Congo, onde se dança uma espécie de tam-tam.

Alfredo Brandão pensa que é uma corruptela de boa ou mboa, vocábulo indígena, significando cobra.

Segundo Oneida Alvarenga, que é dos poucos folcloristas brasileiros que trataram a dança do buá ou abordaram esse tema (ver Música popular brasileira, p.111) não há "nenhuma razão aparente" para considerar o nome da dança corruptela de boa, no que estou plenamente de acordo, mesmo porque da descrição deixada por Alfredo Brandão não consta que se fizesse a marcha rítmica, imitando à da serpente.

Deve-se ao saudoso historiógrafo e folclorista Alfredo Brandão o registro dessa dança; foi ele o primeiro a registrar a dança do buá, que classifica de "uma mistura cabocla e africana" [1].

Segundo a descrição de Alfredo Brandão, a dança do buá era executada pelos negros e negras de mãos dadas e "em duas ordens que se enfrentam e avançam e recuam como nas quadrilhas", fato particularíssimo e estranho nas danças do Nordeste.

Trata-se assim do tipo em fileiras opostas, que Oneida Alvarenga diz que "são especialmente comuns no centro sul do Brasil" [2].

A observação de Alfredo Brandão, "como nas quadrilhas", é do maior interesse e oportunidade, porque vem em apoio da tese de que as danças em que os seus comparsas se dispõem em duas ordens fronteiras são influenciadas pela quadrilha européia, Aliás, outro fato que faz lembrar a quadrilha é o referido no verbete "Dança" do Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo: "Negros e indígenas dançavam em círculo e faziam a marcha rítmica como o chemin de fer das antigas quadrilhas indo por dentro das casas, saindo adiante". [3]

Estudando as "Danças em fileiras opostas", Oneida Alvarenga é de opinião que "atualmente parece não haver nenhuma documentação conhecida que assinale a freqüência na África e entre os nossos índios da disposição coreográfica em fileiras que avançam e recuam".

Entretanto o saudoso Mário de Andrade, musicógrafo e folclorista a quem também se referiu aquela folclorista, alude em seu magnífico estudo sobre "O samba rural paulista" [4], a uma informação sobre essa disposição coreográfica em fileiras opostas entre os negros africanos. Também já li algo a esse respeito.

Oneida Alvarenga apenas conhece uma única descrição de dança em fileiras oposta entre os brasilíndios, citada por Manizer, que a observa na aldeia dos borun (botocudos), em Pancas, no estado do Espírito Santo, em 1914-1915.

As modalidades de danças na África são numerosas e entre elas como as a que assistiu J. Rouche ("La danse", em Le monde Nago, contam-se as danças de trabalho, danças jogos, danças mágicas, danças de espetáculo etc. [5].

A descrição que Alfredo Brandão deixou da dança do buá é a mais sucinta e por isto passo a transcrevê-la na íntegra: "A dança do buá é tambem uma mistura cabocla e africana: Os negros e as negras de mãos dadas em duas ordens que se enfrentam avançam e recuam como nas quadrilhas e cantam a seguinte copia:

É de cuia em cuiambuque
Para fazê maracatu
Maracatu buá
Vira meu povo, Lelê buá
Torna a vira, Lelê buá

Aos últimos versos soltavam as mãos, batiam palmas e pivoteavam sobre si mesmo.

Vê se que a palavra buá é uma corruptela do vocábulo indígena boa ou mboa, cobra". [6]

A dança do buá constitui uma nota singular, evidentemente, no conjunto das danças de origem negra nas Alagoas e, embora atualmente não seja mais executada, pode figurar ao lado das mais conhecidas danças em fileiras opostas, como o cateretê, em que pese a origem ameríndia deste.

A estrofe narrada por Alfredo Brandão, embora possua elementos que identificam a influência negra, não é a meu ver, por isso só, capaz de caracterizar o tipo de dança. Segundo aquele autor, ao tratar do Folklore do negro alagoano, com outras reminiscências, "além do maracatu, os negros também gostavam das danças do guriabá e do buá, as quais tinham algo de indígenas e africanas". [7]. Ora, pelo que se vê, estava a dança do buá na mesma linha diversional do maracatu e do guriabá, este, folguedo do tipo reisado. Possivelmente, dada a época em que foi registrada, a dança do buá não era mais observada em Viçosa (Alagoas) e talvez Alfredo Brandão a tivesse reconstituído de memória, perdendo assim certas particularidades. Contudo, ele fixou perfeitamente a dança, para caracterizá-la no grupo coreográfico em fileiras opostas: "em duas ordens que se enfrentam, avançam e recuam como nas quadrilhas".

Que o dinamismo cultural tivesse modificado a dança do buá, sem, entretanto a atingir estruturalmente, é possível. Assim tem acontecido com o nosso coco. Mas que a dança do buá, conservando o sistema de dançarinos em duas ordens ou fileiras opostas, "que se enfrentam, avançam e recuam como nas quadrilhas", não me parece de influência européia ou indígena senão de pura influência negra. Na mais remota antigüidade se acaso provém desses tempos recuados do cativeiro, como parece, a chamada dança do buá ligava-se a outros motivos coreográficos, talvez ritualistas ou tribais, e não ser a uma dança simplesmente diversional. Sabe-se que a dança (seja qual for a sua natureza) é "quase continua entre as populações africanas" (J. Rouch). [8]

A distância não permite mais firmes conclusões: porém que o negro para as terras do seu cativeiro trouxe os seus elementos culturais (transculturação) não é dado suspeitar ou negar: ainda hoje seus deuses, suas danças mágicas, seu ritmo inconfundível, sua música, perduram sob as manifestações nítidas de sobrevivência afro-negras.

Sofrendo o processo evolutivo é admissível que a dança do buá viesse a ser posteriormente como no tempo de Alfredo Brandão simples dança diversional. Mesmo assim como a viu o folclorista de Viçosa, ela se destaca do conjunto de danças do Nordeste pela sua forma estranha em fileiras opostas. Merece quando não o registro histórico que dela fez Alfredo Brandão.

Notas: 1. Alfredo Brandão."Os negros na história de Alagoas". Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, Ariel Ed., 1935; 2. Oneida Alvarenga. Música popular brasileira. Porto Alegre, Editora Globo, 1950; 3. Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1954; 4. Mário de Andrade. "O samba rural paulista". Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, ano 4, vol. 41; 5. J. Rouche. "La danse". Presence Africane, número especial 8-9; 6-7. Alfredo Brandão. Op. cit.; 8. J. Rouche. Op. cit.

Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira; Jangada Brasil in "Duarte, Abelardo - A dança do buá" -  Jornal de Alagoas, 28 de julho de 1957.

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