sexta-feira, 3 de junho de 2011

Encomendação das almas

A "encomendação das almas" é uma procissão só de homens, realizada nas sextas-feiras ou segundas-feiras à meia-noite. Vestindo buréis brancos e capuzes, e ao som de flautas, violoncelos rabecas, matracas e campainhas, os penitentes dirigiam-se aos cruzeiros.

Cantando ofícios e ladainhas em voz alta e atordoante, faziam orações para os condenados à morte, os presos da cadeia, os perdidos nas matas e os mortos sem confissão.

A procissão, iluminada por velas cobertas com papel ou folha-de-flandres, tornava-se sangrenta quando estavam presentes os disciplinantes, que se açoitavam com chibatas de couro cru, fio de corda de linho com pedaços de prego e cacos de vidro.

Durante a procissão, as casas mantinham portas e janelas fechadas, pois, caso contrário, seus participantes arrebentavam a pedradas todos os objetos que vissem dentro das residências.

A procissão das almas foi observada por Auguste de Saint Hilaire (1779—1853) em Vila Rica de Albuquerque (atual Ouro preto), Minas Gerais, na quaresma de 1817.


Em certas regiões do Ceará era conhecida como lamentação das almas, em São Paulo e Minas Gerais como recomendação das almas.

Desaparecida do Brasil desde a segunda metade do séc. XIX, mantém-se ainda em alguns pontos da América espanhola.

Recomenda de almas

Logo após o tríduo de Momo vem o período de resguardo: nada de festas durante a Quaresma. Esse período de quarenta e sete dias, a começar da Quarta-feira de Cinzas inclusive o terminando no Domingo de Páscoa (e incluindo o Sábado Santo, anteriormente de Aleluia) não tem festividades de caráter religioso popular.

Todavia, especialmente o povo rural costuma efetuar práticas propiciatórias na Quaresma, com grupos de homens, mulheres e crianças que saem à noite, pano branco cobrindo a cabeça, rosário nas mãos, berra-boi (um cordão com peso na ponta, e que é girado rápido, provocando forte zumbido), a matraca... Objetivo: fazer orações para as almas sofredoras ou para os que morreram de acidentes. Chama-se esses grupos de Recomenda de Almas, Recomendação de Almas, Encomenda de Almas. Existem essas Recomendas em praticamente todo o Estado.

Veja trechos da Recomenda de Almas, gravada em Franca, em junho de 1960 no Festival de Folclore, o grupo era formado por cinco homens, duas mulheres e duas criança:

Alerta, alerta pecadores
Acordai, quem está dormindo
Veja que o sono é irmão da morte
E a cama é a sepultura

Peço que vós reze um Padre Nosso
Padre Nosso e Ave Maria
Pras almas da obrigação
Peço pelo amor de Deus

(Pausa para rezar, cerca de 20 segundos)

Peço que vós reze mais um Padre Nosso
Padre Nosso e Ave Maria
Pras almas do purgatório
Peço pelo amor de Deus

(Pausa, cerca de 20 segundos)

Peço que vós reze mais um Padre Nosso
Padre Nosso e Ave Maria
Pras almas todas gerais
Peço pelo amor de Deus

(Pausa, cerca de 20 segundos)

Estava Maria
Fazendo oração
Chegou Madalena
Também São João

O meu filho está preso
Numa corrente sem fim
Soltai o meu filho
Pertence a mim

Nosso Pai lá do céu
Olhai pela terra
Livrai-nos da fome
Da peste e da guerra

Cadê o garfo que furou
Os olhos de Santa Luzia?
Lá pro céu ela foi cega,
Senhora Santa Luzia

(Mas) Quando ela perdeu a vista
Que tristeza, ai, não seria
Quando ela perdeu a vista
Não enxergô a luz do dia

Cadê a toalha que enxugou
Os olhos de Santa Luzia?
Lá pro céu ela foi cega
Senhora Santa Luzia

Ave Maria
Cheia sois de graça
Salvais as nossas almas
Bendita sejai.

(PELLEGRINI FILHO, Américo. Folclore Paulista)

A procissão

Até meados do século XIX nas sextas-feiras da Quaresma ou durante novembro (mês das almas) saíam procissões noturnas em sufrágio das almas do purgatório. Muitas não eram dirigidas pelos sacerdotes.

Entre onze horas e meia-noite, os homens vestindo cogulas brancas, que lhes encobriam inteiramente as feições, levando lanternas, iniciavam o desfile, que era guiado por uma grande cruz. Cantavam rogatórias, ladainhas, rezando rosários, e detinham-se ao pé dos cruzeiros, para maiores orações, em voz alta.

Certas procissões conduziam instrumentos de música, e as orações eram cantadas. revestiam-se do maior mistério, e era expressamente proibido alguém ver a encomendação das almas, não fazendo parte do préstito. Todas as residências nas ruas atravessadas deveriam estar hermeticamente fechadas e de luzes apagadas. Qualquer janela que se entreabrisse era alvejada por uma saraivada de pedras furiosas.

A encomendação das almas deixava, pelo seu aparato sinistro e sigiloso, a maior impressão no espírito do povo. Afirmava-se que o curioso que conseguisse olhar a procissão, veria apenas um rebanho de ovelhas brancas, conduzido por um frade sem cabeça. Algumas encomendações permitiam a flagelação penitencial, e muitos devotos feriam-se cruelmente, durante a noite, necessitando tratamento de muitos dias.

Ainda ouvi as descrições de velhos moradores de Natal, que tinham ouvido, tremendo de medo, as lamentações assombrosas da encomendação, que vieram até depois do ano do cólera, 1856, assustando a todos com o sinistro batido das matracas e gemidos dos flagelantes.

(CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro)

Fontes: Jangada Brasil; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora.

Um comentário:

  1. O desencantamento da quaresma, entendido como o esquecimento ou a falta de respeito, mesmo que este esteja interpretado de forma atrelada aos aspectos religiosos, nos faz refletir não apenas sobre a perda de parte da cultura popular, que se desintegra com a perda das características rurais das cidades, mas da cultura religiosa e de valores inerentes à natureza humana: como o encantamento com o desconhecido, a religiosidade (entendida em uma perspectiva ampla, que abrange os valores humanos e consequentemente sociais) e o respeito com as tradições. E respeitar as tradições não deixa de ser, quase que intuitivamente, uma forma de ...

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