Coco de roda - Alagoas |
Diferentemente do que ocorre no coco, em que só há um tirador de versos (tirador-de-coco), cada componente do milindô pode tirar versos, de sua própria composição ou de qualquer cantador popular. Os pares dispõem-se em círculo e, durante o estribilho (em coro), soltam-se da roda em movimento e dão uma volta completa. Então os pares podem ser trocados, mas sempre com os vizinhos, para não perturbarem a harmonia do folguedo.
O acompanhamento musical é só o do ritmo dos cânticos, que pode ser de marchinha, baião ou valsa
Milindô: dança popular do rico folclore caririense
Passo alguns meses do ano em pequena e aprazível propriedade do sítio Lameiro, a poucos quilômetros do Crato. A casa situa-se em elevação de terreno, às margens da carroçável que liga a cidade à usina hidrelétrica do Batateira.
Há tempos atrás, em muitas noites, dificilmente podia conciliar o sono, a ouvir ininterruptamente, toada de mulheres, em coro, a encher o espaço, ecoando nas quebradas dos pés-de-serra. O ritmo era bem monótono, como todo o cantar tipicamente sertanejo. Aquilo me incomodava, mas não deixava de chamar-me a atenção. Cheguei até a presenciar aquela dança feminina, ritmada ao som daquelas vozes, que tão bem se confundiam entre si.
A função, tão comum no sítio Lameiro, cessou. A dona da casa promotora do folguedo — Joana Matias, enviuvara, com a morte trágica do marido. A casinha de palha, à beira do riacho Piabas, nome do Grangeiro antes de penetrar na zona urbana de Crato, não alojou mais festas. Ficou apenas como a morada do trabalho exaustivo, no amanho da terra, na fabricação de óleo de nogueira e na lavagem de roupas de freguesia citadina.
Esqueci-me da dança, por não ter sido mais exibida naquela redondeza. Ao narrar na imprensa, as festividades folclóricas do centenário de elevação de Crato à cidade, alguém me insinuou que não esquecesse de citar o milindô, embora não exibido naquelas comemorações que marcaram época no Ceará, como folguedo bem caririense.
Ao ver a pequena nota que escrevi sobre aquela função matuta, o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo escreveu-me, pedindo-me maior esclarecimento do assunto por mim tocado de leve, em reportagem para O Povo e o Diário de Pernambuco.
Procurei Joana Matias, antiga vizinha do Lameiro e ora residente na cidade. É mulher de certa idade, trabalhadora ao extremo, com noção de responsabilidade de criar família, como poucas pessoas possuem atualmente. É parda e esguia, podendo suportar, ainda hoje, horas ininterruptas no trabalho. Assim criou suas filhas que só saem de casa, quando vão casar com caboclos bem afeitos aos deveres.
Joana Matias prontamente atendeu ao meu pedido e ficou-se a citar versos de cor, com a respectiva toada, dançou em minha presença e ainda citou casos ligados àquela função outrora bem espalhada nos sítios caririenses.
O milindô como é dançado nos pés-de-serra de Crato
O milindô é dança de roda, do gênero coco, mas com certa diferenciação. No coco é de praxe só haver um tirador de versos, enquanto todos os outros dançadores entoam o estribilho em coro e muitas vezes batendo palmas. No milindô cada componente do folguedo pode tirar seus versos, de sua própria composição ou de qualquer cantador popular. Em casa de Joana Matias dançavam apenas mulheres, prática comum em outros locais.
Na ocasião em que se canta o estribilho, em coro, os pares despregam-se da roda em movimento e dão uma volta completa. O ritmo da música pode variar de marchinha para o baião e até mesmo para a valsa, que teve o condão de adaptar-se, com feitio regionalista, em quase todos os recantos do planeta.
Vejamos amostra do milindô:
Olê, milindô
Olê, milindô
Minha nega
Tintiru tim dandô
Olê, milindô
Minha nega
Tintiru tim dandô
A influência africana na quadrinha está bem clara.
Confessou-me minha informante que, em sua mocidade, conhecera moça procedente de Palmeira dos Índios, em Alagoas, que era perita tiradeira de versos próprios, ou em cantar outros decorados, de poetas de sua terra, nas brincadeiras do milindô. Disse-me também que, desde menina presenciava aquele folguedo nos sítios cratenses. Isso demonstra que se tal função nos chegou das Alagoas. foi muito antes da corrente imigratória, vinda para Juazeiro do Norte, atraída pelo padre Cícero Romão Batista. Sempre tivemos imigração regular, primeiramente da Bahia e Sergipe, conforme comprovou, em artigo na revista Itaytera, de 1955, o historiador padre Antônio Gomes de Araújo, e depois outra de Pernambuco e conseqüentemente de Alagoas, terras identificadas pela intensa produção canavieira.
Agora passemos a conhecer o milindô, em cadência de valsa:
No terreiro de minha casa
Vamos vadiá!
Tá se enchendo de capim
Vamos vadiá!
Tá se acabando as passadas
Vamos vadiá!
Que meu bem dava por mim
Vamos vadiá!
Tá se enchendo de capim
Vamos vadiá!
Tá se acabando as passadas
Vamos vadiá!
Que meu bem dava por mim
Coro:
Cavaleiro, rode a dama
Vamos vadiá!
Cada qual em seu lugá
Valsô! Valsá!
Vamos vadiá!
Valsou! Valsá!
Vamos vadiá!
Cada qual em seu lugá
Valsô! Valsá!
Vamos vadiá!
Valsou! Valsá!
No milindô não há acompanhamento de qualquer instrumento musical, nem que sejam os mais rudimentares, a exemplo do ganzá, maracá ou reco-reco. A dança acompanha o ritmo dos cânticos. Não fica ninguém no meio da roda dançante, como sucede no samba da Bahia, ou na dança — viadinho, também integrante do folclore caririense. Podem os pares ser trocados, a fim de não perturbar a harmonia do folguedo.
Às vezes, podemos ouvir versos cadenciados em música de marchinha:
A flor do manacá
É branca e cheira
Todo mundo bem que sabe
Que eu sou solteira
É branca e cheira
Todo mundo bem que sabe
Que eu sou solteira
São cantares do milindô feminino, última sobrevivência daquela função, em terras do vale caririense.
Outra amostra:
Bravo! Bravo!
Que mal te fizeram
Teu amor sou eu
Bravo! Bravo!
Que mal te fizeram
Teu amor sou eu
Bravo! Bravo!
Ou então:
Vou-me embora
Lá pro alto
Que do alto vejo bem
Lá de casa de meu sogro
Vejo os olhos de meu bem
Quando eu tava na calçada
Que o sereno me cobriu
Quando eu vi, você não estava
Quando eu vi, você não me viu
Lá pro alto
Que do alto vejo bem
Lá de casa de meu sogro
Vejo os olhos de meu bem
Quando eu tava na calçada
Que o sereno me cobriu
Quando eu vi, você não estava
Quando eu vi, você não me viu
Nesses versos não se nota qualquer influência africana, como no primeiro que citei, que parece ser o mais antigo e justamente o que deu origem ao nome da brincadeira popular do Cariri, ou de outra região do Nordeste.
Todos esses folguedos bonitos e inocentes estão a desaparecer do cenário sertanejo, com a civilização que penetra no interior. Rádios e amplificadores de som são agora que ditam a música preferida do povo. Muitas vezes chega-nos de retorno o ritmo do baião que nasceu nos brejos e nos pés-de-serra, nas sanfonas e nas músicas de couro, popularizado e transformado agora pelo malandro das favelas e dos morros cariocas. (Figueiredo Filho, J. de. "Milindô: dança popular do rico folclore caririense". O Povo. Fortaleza, 07 de janeiro de 1957, primeiro caderno, p.6)
Fontes: Jangada Brasil; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora
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